Entrevista: "Projeto legaliza a 'escravidão' e trata o trabalhador como bicho"

Desde 1940, o trabalho escravo no Brasil é previsto como crime tipificado no artigo 139 do Código Penal, tendo o seu conceito reformulado em 2003. Atualmente, se considera trabalho escravo a constatação de quatro situações, isoladas ou juntas: cerceamento de liberdade de se desligar do serviço, servidão por dívida, condições degradantes de trabalho e jornada exaustiva. Porém, esse conceito contemporâneo de trabalho escravo, que é apoiado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), Organização das Nações Unidas (ONU) e diversos movimentos sociais e trabalhistas, está sob ameaça, segundo o procurador do Trabalho Thiago Gurjão.

Representante de Mato Grosso na Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete) do Ministério Público do Trabalho (MPT), o procurador afirma que o Projeto de Lei 3842/2012, de autoria do ex-deputado Moreira Mendes, visa dar o direito de empregadores tratarem seus funcionários “como coisas, como objetos”. O projeto, que chegou a ser aprovado na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR) da Câmara dos Deputados, pretende retirar os termos “jornada exaustiva” e “condições degradantes de trabalho” da definição do crime.

“Derrubar o conceito é fechar os olhos para o problema e fingir que ele não existe. O projeto quer tratar trabalhador como bicho, ou pior do que bicho, e isso é algo que nos causa perplexidade. A gente espera que essas tentativas não tenham êxito”, disse o procurador, em entrevista exclusiva ao Mídia News.

Para Thiago Gurjão, além de o projeto tentar impor um “retrocesso histórico” aos direitos e à dignidade conquistada pelos trabalhadores, também visa beneficiar maus empregadores e pode, inclusive, afetar a imagem brasileira perante a comunidade internacional.

“Mesmo se deixarmos de lado as questões mais fundamentais à dignidade do trabalhador e pensarmos sob a ótica daqueles que, por algum interesse econômico não sei de que ordem, pretendem rever essa legislação, não há qualquer ganho. Aquele que explora o trabalho em condições análogas à de escravo e que, em consequência disso, acaba reduzindo significativamente o seu custo de produção, prejudica aquele empregador que atua de maneira regular”, afirmou.

Na entrevista, o procurador Thiago Gurjão também falou sobre as investigações de trabalho escravo em Mato Grosso, as dificuldades de fiscalização, os projetos para inserir as vítimas em empregos dignos e as penas aplicadas às empresas, consideradas por ele como muito aquém do ideal.

Confira a íntegra da entrevista:

MidiaNews – Qual é a definição atual de trabalho escravo?

Thiago Gurjão - Existe um conceito de escravidão e de condições de trabalho análogas à escravidão. Tradicionalmente, quando a escravidão era permitida, a gente tinha ali uma restrição mais severa à liberdade individual. Liberdade de locomoção, liberdade de ir e vir. Com o passar dos anos, houve a proibição da escravidão propriamente dita, mas determinadas formas de exploração do trabalho humano ainda tinham pontos em comum com aquelas experiências tradicionais da escravidão, que era o fato de não se considerar o trabalhador como alguém dotado de direitos fundamentais inerentes à condição humana. O que diferencia a pessoa humana dos objetos é o fato da pessoa humana ser dotada de dignidade. Em algumas situações, esse trabalhador não é respeitado em sua condição humana, acaba sendo reduzido ao estado de objeto, sendo coisificado. Com a evolução de todas as ideias relacionadas aos direitos humanos do trabalhador, passa-se a compreender que tanto o escravo tradicional quanto este trabalhador que, embora supostamente livre, é tratado como objeto ou coisa, são desprovidos de condições mínimas e afetados em sua dignidade.

O que a gente tem hoje é a proteção da dignidade humana, que, muitas vezes, é afetada pelo trabalho em condições análogas à de escravo.

MidiaNews - Então, o trabalho escravo não é apenas aquele trabalho forçado, em que a pessoa é obrigada a trabalhar sob ameaça?

Thiago Gurjão – Além dessa vertente mais tradicional, a falta de liberdade de locomoção pode se manifestar de formas mais sutis, como a retenção de documentos ou a retenção de valores para o pagamento de dívidas criadas e maquiadas com este propósito. Temos também a imposição de jornadas exaustivas ao trabalhador e a submissão do trabalhador a condições degradantes. Essas condições degradantes seriam exatamente aquelas em que existe a manifesta incompatibilidade com a condição humana, com a dignidade humana nas condições de trabalho. Essa condição de trabalho acaba sendo, hoje, uma das mais comuns de flagrantes de trabalho escravo.

MidiaNews – Em Mato Grosso, há locais específicos onde ocorrem mais denúncias e flagrantes de trabalho escravo?

Thiago Gurjão – Temos uma distribuição muito grande de focos no Estado. Temos determinados momentos em que alguns problemas ficam mais acentuados. Primeiro, pela questão histórica: as primeiras denúncias de trabalho escravo contemporâneo surgem na região do Vale do Araguaia. Depois, passamos a ter focos mais ao Norte. Hoje, temos muitos casos na região Oeste do estado. Também temos casos próximos a Cuiabá, na região de Rondonópolis. É um problema que não é específico de determinada região. O que temos como uma característica principal é a precariedade em que os trabalhadores são encontrados.

MidiaNews – A maioria das denúncias e dos flagrantes ocorre nas zonas rurais?

Thiago Gurjão – Nós temos um aumento naquilo que chamamos de trabalho escravo urbano, em setores como o têxtil, construção civil. Em Mato Grosso, o predomínio do trabalho escravo é na zona rural.

MidiaNews - Há setores específicos que utilizam esta prática?

Thiago Gurjão – Em Mato Grosso, ocorre mais na agricultura e na pecuária em geral.

MidiaNews – As denúncias estão diminuindo ou aumentando? Qual o panorama atual?

Thiago Gurjão – A gente tem visto, nos últimos anos, uma diminuição no número de trabalhadores resgatados. Em 2000, foram 245 e, até este ano, foram 19. Por um lado, é natural, porque é um problema que existe há muito tempo, mas que era negado. Especialmente nos últimos 20 anos, temos o reconhecimento pelo Estado brasileiro, porque até então o Brasil nem reconhecia, negava perante a comunidade internacional a existência de trabalho escravo. Temos então uma evolução histórica.

No caso de Mato Grosso, o último ano foi muito atípico em relação ao atual, em que houve um aumento de resgatados. É até um exemplo de que temos que ter muito cuidado com esses dados, porque o trabalho escravo é uma situação ilícita, antijurídica. Então, quem o pratica está sempre tentando fugir da fiscalização e da denúncia. O aprimoramento da atividade de fiscalização faz com que aqueles que pretendem reduzir seus custos mediante exploração do trabalho escravo tentem mudar as formas de se fazer essa exploração.

Temos como referencial a erradicação, atuamos com o objetivo de ter uma atividade de fiscalização intensa para permitir a erradicação. Infelizmente, a gente está muito longe disso. A atuação do Ministério Público e de diversas instituições têm resultado em diminuição dos casos. Mas é um dado que a gente recebe com muito cuidado, porque ainda há formas bastante graves de exploração do trabalho, além da preocupação de que certas situações podem não estar chegando às instituições. O nosso norte é a erradicação e não uma visão numérica ou de comemorar eventual diminuição de resgatados. O panorama é muito mais complexo.

MidiaNews – O senhor quer dizer, então, que a diminuição do número de resgatados não implica necessariamente na diminuição do trabalho escravo?

Thiago Gurjão – Exatamente. Pode ser que a denúncia não tenha chegado a tempo, pode ser que ninguém tenha denunciado. Ou denuncia, mas quando a atividade está no final. E quando a fiscalização chega no local, já não consegue fazer o flagrante. Uma série de situações podem ocorrer, incluindo a dificuldade de fiscalização. A gente tem um problema notório e que não é nenhum demérito aos auditores fiscais do Trabalho, pelo contrário, que é a falta de recursos humanos para realizar estas atividades. Nos últimos anos, tivemos uma diminuição no número de auditores, inclusive em Mato Grosso. Isso é uma grande preocupação.

MidiaNews – Há uma equipe dedicada apenas à questão do trabalho escravo no MPT?

Thiago Gurjão - No Ministério Público do Trabalho, não temos procuradores exclusivos para isso. Todos os 13 procuradores do Trabalho no estado atuam em relação a todas as demandas. Temos coordenadorias temáticas e procuradores que ficam dedicados a alguns aspectos específicos de projetos, como é o caso da Coordenadoria de Erradicação do Trabalho Escravo.

MidiaNews – Como funciona esse trabalho de fiscalização e apuração?

Thiago Gurjão – Em relação ao Ministério Público do Trabalho, temos procuradorias em Cuiabá, Rondonópolis, Cáceres, Água Boa, Alta Floresta e Sinop. Mas em relação ao combate ao trabalho escravo, temos uma atuação interinstitucional. Tanto nacional quanto regionalmente. Temos o grupo móvel nacional, que funciona com a participação de diversas instituições, composto por auditores fiscais do trabalho, procuradores do Ministério Público do Trabalho, policiais federais, além de outras instituições que eventualmente o integram. Porque é uma situação complexa, com desdobramentos nas áreas pena e trabalhista, e que precisa da ajuda de diversas instituições. Recebida a denúncia, fazemos a identificação do lugar e, de acordo com as nossas limitações materiais e de recursos humanos, essa equipe multinstitucional vai até o local. Além desse grupo móvel nacional, que atua em todos os estados, inclusive em Mato Grosso, temos também auditores fiscais do Trabalho que se dedicam ao combate ao trabalho escravo. Temos operações realizadas regionalmente, e, a partir da formação dessa equipe, são feitas operações para a verificação in loco.

MidiaJur - Além das denúncias, há um tipo de agenda desse grupo para fiscalizar empresas ou locais em que há frequentes denúncias de trabalho escravo?

Thiago Gurjão – Eventualmente, a gente tem operações propagadas a partir de situações de empregadores que já incorreram em trabalho escravo, firmaram compromisso em não reiterar e não foram denunciados novamente. É importante retornar ao local para ver se, de fato, a conduta foi regularizada. Muitas vezes, a depender da dinâmica das operações que são realizadas periodicamente, são investigados estabelecimentos que são próximos daqueles onde foi deflagrado o trabalho escravo. São apenas exemplos, pois é algo muito dinâmico. Espero que não só aqui, mas em âmbito nacional, isso seja aprimorado, para que a gente avance sobre a responsabilização das cadeias produtivas. Infelizmente, não temos uma estrutura de fiscalização como gostaríamos. Com a atual estrutura, sequer conseguimos dar conta das denúncias que são recebidas.

Isso é preocupante, pois o nosso ideal é que a gente consiga ter uma maior dinâmica de atuação para poder contemplar outros aspectos, como a responsabilização das cadeias produtivas. É um tema recorrente: você tem um trabalho precário lá na ponta em uma atividade aparentemente sem repercussão econômica, mas tem alguém que fornece matéria-prima para uma empresa, que fornece para outra, e, lá na outra ponta, há uma grande companhia, uma grande empresa, que, na prática, se beneficia do trabalho em situações de exploração, obtendo uma vantagem indevida no mercado. Em relação a esse tipo de inteligência de atuação, já temos alguns casos de referência, como no setor têxtil, com companhias sendo responsabilizadas por trabalho escravo em razão das condições das oficinas que integravam aquela cadeia produtiva. É um exemplo de atuação e a gente ainda pretende vê-la reforçada no Ministério Público do Trabalho.

MidiaNews – São necessários mais procuradores, mais auditores?

Thiago Gurjão - É difícil pensar essa atuação exclusivamente no âmbito do Ministério Público do Trabalho. A gente tem, por exemplo, o trabalhador que é resgatado do trabalho escravo. Ele tem direito ao seguro desemprego especial, mas, para que ele receba, ele precisa ser resgatado por um auditor fiscal do Trabalho. Então, se um membro do Ministério Público do Trabalho resgatá-lo, pode-se fazer algumas atividades, como pedir indenização, ajudar o trabalhador. Mas ele não vai conseguir o seguro desemprego especial. Por outro lado, o fiscal do trabalho não consegue indenizações. Ele só vai conseguir exigir valores elementares, mas não consegue indenizações que fogem à literalidade da lei. Essa é uma atuação que vai caber exclusivamente ao Ministério Público do Trabalho.

É claro que a gente precisa de uma estrutura de pessoal em Mato Grosso e em diversos outros estados que serviriam para reforçar a atuação. Não deixando de lembrar que, para se aperfeiçoar, precisamos pensar em todas essas instituições que estão envolvidas.

MidiaNews – Faltam orçamento e/ou novos concursos?

Thiago Gurjão - Em tese, deveria ter um número muito maior de auditores fiscais do Trabalho, para que eles conseguissem lidar não só com o trabalho escravo, mas com todas as demandas de fiscalização na área trabalhista. A gente sente essa diminuição no número dos auditores fiscais do trabalho. É uma deficiência muito clara, que tem se agravado nos últimos anos. Isso tem nos preocupado enquanto instituição que se engaja no combate ao trabalho escravo.

MidiaNews - Qual é o perfil do trabalhador que é submetido ao trabalho escravo em Mato Grosso?

Thiago Gurjão - Em relação às formas de exploração, a mais recorrente é a degradante. Agora, tratando da pessoa do trabalhador, há algumas características que revelam que são pessoas dotadas, na maior parte dos casos, de uma vulnerabilidade especial que as tornam um alvo para essas situações de aliciamento e exploração. Por exemplo: pessoas que não tiveram acesso à educação, a serviços públicos básicos em toda sua vida; pessoas submetidas ao trabalho infantil, quer dizer, que deixaram de ter educação e conviveram com situações precárias, tendo que arranjar um meio de vida ao invés de estar estudando; pessoas que vivem em comunidades em que simplesmente não há acesso a nenhum meio de vida digna; comunidades que sofrem com problemas como a falta de terra como meio de produção, além da ausência de serviços mínimos.

Também são alvo aquelas pessoas que vivem em uma comunidade de determinado Estado, na qual não se tem acesso a nada. Não se tem acesso nem a serviço público. Não se consegue realizar nenhuma atividade econômica, as propriedades acabam sendo alvo de companhias e empresas que vão dificultando o acesso àquela terra, restringindo a possibilidade de produção para o próprio sustento. Então, a gente tem essas características de baixa escolaridade, falta de acesso a serviços públicos. E é claro que temos que lembrar que essas características de vulnerabilidade social não podem levar ninguém a acreditar que essas pessoas têm responsabilidade nisso. 

É importante reconhecer e enfrentar essas características de vulnerabilidade social sem esquecer que, por outro lado, a exploração só acontece porque alguém quer se aproveitar dessas características para impor o trabalho escravo ao trabalhador.

MidiaNews – E quais são as características dos exploradores?

Thiago Gurjão - As pessoas que se aproveitam dessa situação de vulnerabilidade social especial para submeter alguém ao trabalho absolutamente aviltante e incompatível com a dignidade humana pretendem, no final das contas, reduzir seus custos de produção às custas de condições mínimas de trabalho. É disso que se trata o trabalho escravo. Ninguém está explorando o trabalho escravo por uma mera questão de perversão ou maldade. Existem outras formas de exploração humana com características de psicopatia. Quando um empregador ou uma empresa escolhe submeter alguém ao trabalho escravo é porque quer reduzir os custos de produção e obter lucro às custas da exploração do trabalho humano. 

MidiaNews – Então, ocorre de estes empregadores se utilizarem dessa vulnerabilidade para enganar os trabalhadores e os deixarem em um beco sem saída?

Thiago Gurjão – Sim, acontece até pela forma como se dá essa exploração. Ocorrem muitas situações de falsas promessas. Trabalhadores são retirados dos locais de origem, muitas vezes de outros estados, com promessas de trabalhos excelentes e condições ótimas de vida. O trabalhador vem muitas vezes tendo que pagar pelo transporte e, quando chega aqui, a realidade é outra. Há muitos casos em que o trabalhador fica sem condições de voltar ao local de origem, devido a situações de restrição de liberdade mais sutis. O trabalhador fica solado no meio do mato, sem dinheiro para voltar.

MidiaNews – Há muitas pessoas de outros estados que vêm a Mato Grosso e acabam sendo submetidas ao trabalho escravo?

Thiago Gurjão - A gente tem muitas pessoas do próprio Estado que vivem em determinada comunidade e são vítimas de falsas promessas de trabalho. Mas também, por outro lado, há muitos trabalhadores vindo de outros estados atrás exatamente dessas falsas promessas. Os aliciadores possuem uma rede de contatos nessas comunidades, que fazem as ofertas de trabalho.

MidiaNews - Depois que o trabalhador é resgatado, qual é o papel desenvolvido pelo Ministério Público do Trabalho?

Thiago Gurjão - O Ministério Público do Trabalho vai primeiro tentar obter a adequação da conduta do empregador e tentar um acordo para que ele não reincida nessa conduta. A gente procura obter um compromisso com o Termo de Ajustamento de Conduta e, em alguns casos, com o ajuizamento de uma ação civil pública que faça com que aquele empregador não mais pratique aquela situação.

A depender do caso, a gente também busca a reparação na esfera individual, pelos danos morais sofridos em decorrência dessa situação de exploração; e também o chamado dano moral coletivo, que é uma previsão legal de uma compensação em dinheiro, que é revertido para toda a comunidade quando se tem uma ofensa a valores fundamentais da coletividade, como é o caso do trabalho escravo.

Explorar o trabalho escravo é violar todo o nosso ordenamento jurídico fundamental à dignidade humana e isso, por previsão legal, acarreta na obrigação de reparar, aliás, compensar a sociedade com o pagamento de indenização. Essa indenização também tem uma finalidade pedagógica. O empregador paga indenização não só para ele, mas para servir de exemplo aos demais empregadores que pensam em reduzir os seus custos utilizando essa exploração. Isso mostra que tal conduta pode sair cara. Temos alguns casos de indenizações que, infelizmente, não chegaram ao patamar adequado, mas que passam dos milhões de reais.

MidiaNews - O trabalhador resgatado tem amparo do Poder Público para poder tentar um modo de vida mais digno?

Thiago Gurjão - Os trabalhadores têm acesso ao seguro desemprego especial, mas ainda não existem políticas públicas em âmbito regional e nacional que efetivamente atendam esse trabalhador para oferecer a ele alternativas de vida digna, para que esse trabalhador não volte àquela situação de exploração.

Com essa preocupação, algumas instituições como o Ministério Público do Trabalho, a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Mato Grosso, a Universidade Federal de Mato Grosso e diversas outras fizeram uma parceria para oferecer a esses trabalhadores algum tipo de alternativa e evitar que eles sejam novamente submetidos ao trabalho escravo.

Foi desenvolvido o projeto chamado Ação Integrada, que é um esforço para oferecer a esses trabalhadores alguma alternativa, como, por exemplo, o acesso à educação e a cursos de qualificação. Esses cursos possibilitam que eles saiam daquela atividade precária, reduzindo a sua vulnerabilidade social e evitando que sejam vítimas novamente dessa situação de exploração.

MidiaNews - Esse projeto é mantido de que forma?

Thiago Gurjão - Essas indenizações obtidas pelo Ministério Público do Trabalho junto à Justiça são usadas para custear todo este projeto. Esse projeto não recebe nenhum recurso orçamentário de nenhum ente Federal ou Estadual, mas já beneficiou centenas de trabalhadores. Os valores das multas pagas pelos empregadores condenados pela prática de trabalho escravo são revertidos para o projeto. Por exemplo, durante o tempo em que os trabalhadores estão no curso. Algumas turmas têm parcerias de emprego com empresas e também é paga uma bolsa para dar condições de o trabalhador permanecer aquele período no curso. Tudo é custeado com essas indenizações.

MidiaNews – A atual legislação permite que as empresas que praticam e financiam o trabalho escravo sejam devidamente punidas?

Thiago Gurjão - Bom, o trabalho escravo é um crime previsto no Código Penal. E aí temos a atuação do Ministério Público Federal, porque a nossa atuação não é na esfera criminal. O Ministério Público Federal propõe a denúncia e dá andamento ao processo penal para responsabilização. Além disso, você tem multas previstas em lei. As empresas e empregadores que praticam o trabalho escravo também vão ter que pagar indenizações por danos morais individuais ao trabalhador que sofreu a exploração e, por fim, indenização por danos morais coletivos.

Na prática, em alguns casos é possível conseguir indenizações significativas, com essa característica pedagógica e punitiva, já que, como eu falei, se alguém explora o trabalho escravo é importante fazer com que essa exploração pese no bolso daquele explorador. Em alguns casos, as indenizações passam da faixa dos milhões de reais e têm um peso importante para que a gente diminua a exploração.

MidiaNews - Existe alguma norma que proíbe a empresa condenada por trabalho escravo de contratar com o Poder Público?

Thiago Gurjão - A gente tem alguns mecanismos de controle, com parâmetros bastante importantes. Um instrumento desenvolvido ao longo dos anos é a chamada lista suja do trabalho escravo, que nada mais é que a publicidade daqueles que foram autuados por trabalho escravo em um cadastro. Essa lista deve ser de conhecimento público, pois é um direito seu saber que, por exemplo, quem fez sua roupa usou trabalho escravo na produção. É um direito de toda sociedade saber dessa informação.

É direito do banco que empresta dinheiro para aquela empresa saber se ela explorou trabalho escravo. Há uma série de regras bem específicas para que o empregador flagrado e autuado por trabalho escravo seja incluído nesse cadastro, permaneça em observação e possa sair do cadastro depois de algum tempo, se adequar a sua conduta.

Não obstante, o Ministro presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, monocraticamente concedeu uma liminar no final do ano suspendendo a publicação desse cadastro, por entender que ele não teria amparo legal. Depois disso, foi reeditada a portaria que regulamenta essa lista, mas o novo cadastro ainda não foi oficialmente publicado.

A informação da lista suja é pública e os jornalistas e qualquer instituição pública ou privada poderiam e podem requisitá-la, sob os fundamentos gerais da Lei de Acesso à Informação.Também já tivemos informações de grandes instituições, como bancos, que prometeram já historicamente a verificar a lista suja na hora de fornecer empréstimos, por exemplo. Essa informação é relevante para que essas instituições não concedam empréstimos a este tipo de empresa.

MidiaNews - Mas a empresa incluída no cadastro é proibida ou não de contratar com o Poder Público?

Thiago Gurjão - Existem restrições em legislações específicas de alguns entes públicos que proíbem essa contratação. O que eu quis dizer é que a preocupação é maior do que isso. A gente tem muitas situações de empreendimentos que dependem de financiamento público para sua atividade econômica. Com o financiamento, o Poder Público potencialmente financia a prática de trabalho escravo. Hoje, o BNDES tem esse cuidado de não conceder empréstimos a empresas que constam na lista suja. E a não divulgação dessa lista chegou a gerar ataques da comunidade internacional, mas esperamos que, com essa nova regulamentação, a situação seja corrigida.

MidiaNews – Falando sobre as grandes empresas lá da ponta, que compram de outra empresa, que compram de outra, e lá no fim há o trabalho escravo. Elas também são punidas com a atual legislação?

Thiago Gurjão - Sem dúvida. Sob o ponto de vista da responsabilidade civil e da legislação trabalhista, a gente já tem uma série de elementos bastante sólidos para considerar, à luz de cada caso, que empresas que tenham em sua cadeia produtiva uma situação de exploração de trabalho escravo sejam responsabilizadas pelo que a gente chama de 'cegueira deliberada'. Isso quer dizer que é absurdo pensar que essa empresa não tivesse conhecimento daqueles fatos. Corporações que controlam a qualidade da produção do fio do algodão também precisam saber da condição do trabalhador que produziu aquele fio.

Não é possível que se verifique a qualidade do fio da linha da roupa, mas não se tenha condições de averiguar a condição humana do trabalhador que produziu aquele fio.

MidiaNews - O Judiciário tem entendido dessa maneira e atuado de forma rápida e eficaz?

Thiago Gurjão - Essa situação ainda é uma atuação mais nova. Não dá para a gente ter referências sólidas, mas é uma situação que vem evoluindo e precisa evoluir, para que não fique apenas na condenação daquele produtor que submeteu o trabalhador ao trabalho escravo,e para que aquela grande companhia que financiou o produtor também seja condenada. A gente já tem na nossa legislação dispositivos legais que autorizam a responsabilização dessas grandes corporações que se beneficiam do trabalho escravo em sua cadeia produtiva. Sendo constatada uma situação como essa, é perfeitamente possível obter uma condenação.

MidiaNews - Mas os valores fixados a título de indenização são adequados?

Thiago Gurjão - Olha, em alguns casos sim, mas, com o devido respeito, eu penso que a gente ainda não tem no Poder Judiciário, isso de maneira geral e considerando todos os precedentes, uma compreensão compatível com a finalidade. A gente tem muitos casos em que as indenizações por danos morais coletivos e individuais são incompatíveis com a violação da dignidade humana. Em relação aos danos morais coletivos, a gente tem que compreender que, no final das contas, pagar férias e décimo terceiro é pagar aquilo que o empregador já deveria ter pago normalmente. Se ele for condenado a pagar isso, não teve nenhum prejuízo e pagou apenas aquilo que já tinha que pagar. Pagar as multas previstas em lei para infrações administrativas que são objetos de autuação do Ministério do Trabalho e Emprego também não tem valor significativo, e não são compatíveis.

Na prática, essas indenizações por danos morais coletivos pela prática de trabalho escravo estão sendo aplicadas de maneira incompatível com a exploração feita. É claro que temos precedentes relevantes, em que a gente avalia a resposta do Poder Judiciário como adequada, mas isso não acontece em todos os casos.

MidiaNews – E quanto às indenizações individuais?

Thiago Gurjão – Nesse aspecto, uma questão que chama nossa atenção é que, muitas vezes, as indenizações por danos morais ao consumidor que sofreu alguma lesão sob o ponto de vista da relação de consumo são maiores do que a indenização individual ao trabalhador vítima de trabalho escravo. Às vezes parece melhor, do ponto de vista financeiro, por exemplo, uma companhia aérea explorar o trabalho escravo do que perder a mala de um passageiro. Pensando no Poder Judiciário como um todo, a gente tem uma resposta que muitas vezes não é adequada e coerente com a gravidade da situação.

Eu já vi diversos julgamentos em que a indenização fixada a um trabalhador que foi explorado no trabalho escravo foi menor que a de um acordo oferecido pela companhia aérea a mim pela perda da minha bagagem. Essa é uma situação que precisa evoluir. O Poder Judiciário precisa compartilhar dessa compreensão da gravidade real do trabalho escravo. Temos precedentes e avanços, mas achamos que também no Poder Judiciário ainda há um caminho de aperfeiçoamento nesse aspecto.

MidiaNews - A Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados aprovou, em abril, um projeto de lei que retira os termos “jornada exaustiva” e “condições degradantes de trabalho” da definição do crime de trabalho escravo. Como o senhor analisa esse projeto?

Thiago Gurjão - A preocupação é enorme. Primeiro, nos causa perplexidade ter que lidar a com a falta de compreensão sobre o problema da exploração do trabalho escravo. Não é um problema de antagonismo entre trabalho e produção, entre trabalhador e empregador, entre instituições de Estado e empresas. É um problema que diz respeito fundamentalmente à própria liberdade de mercado e às condições de concorrência de mercado.

Mesmo se deixarmos de lado as questões mais fundamentais à dignidade do trabalhador e pensarmos sobre a ótica daqueles que, por algum interesse econômico não sei de que ordem, pretendem rever essa legislação, não há qualquer ganho. Aquele que explora o trabalho em condições análogas às de escravo e que, em consequência disso, acaba reduzindo significativamente o seu custo de produção, prejudica aquele empregador que atua de maneira regular.

MidiaNews - Então esse projeto não beneficiaria sequer os produtores que a bancada ruralista diz defender?

Thiago Gurjão - Eu acho que esses atores políticos poderiam deixar de lado esse combate ao conceito do trabalho escravo, como se supostamente estivessem fazendo isso em nome das melhorias para o seu negócio. A verdade é que alguns membros estão tentando burlar a legislação e, sobretudo, direitos elementares para diminuir o seu custo de produção, prejudicando os bons empregadores.

O primeiro aspecto a ser ressaltado é que não compreendemos exatamente essa preocupação de alguns atores do setor econômico e gostaríamos, quem sabe, de poder contar com eles no sentido diametralmente oposto para fortalecer o combate aos maus empregadores. Além disso, a questão representa um retrocesso social significativo. A gente tem toda uma construção histórica legislativa que vai desde o reconhecimento do problema até a criação de mecanismos para defender o trabalhador, e agora querem simplesmente jogar fora todo esse trabalho em favor de não se sabe quais interesses. Isso, inclusive, pode prejudicar a credibilidade do Estado brasileiro no cenário internacional e diante dos agentes econômicos internacionais.

MidiaNews – O senhor fala em relação aos negócios firmados por empresas de fora com as empresas brasileiras?

Thiago Gurjão – Sim, porque quando se tem um reconhecimento de que, no Brasil, há combate ao trabalho escravo, você tem instrumentos sólidos como a própria lista suja, que permite que as empresas de fora saibam que as firmas brasileiras com as quais fecharão negócios são regulares. Elas têm tranquilidade de fechar um negócio porque sabem que o Brasil não finge que o problema não existe. Derrubar o conceito é fechar os olhos para o problema e fingir que ele não existe.

O projeto quer tratar trabalhador como bicho, e isso é algo que nos causa perplexidade. A gente espera que essas tentativas não tenham êxito. Também é importante o engajamento do cidadão e da sociedade contra esse projeto. Até porque estamos tratando de trabalho e todos nós trabalhamos, então todos nós somos potenciais vítimas, em tese, da diminuição dessa proteção legal.

Fonte: Mídia News/ Lucas Rodrigues

Foto de Capa: MPT

 

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