Tráfico de pessoas e escravidão moderna

Por Renan Kalil*

27/07/2015 - O tráfico de pessoas é, no imaginário popular, normalmente associado a duas situações em que há a travessia de fronteiras pelo ser humano: a primeira é contemporânea, em que a vítima é explorada sexualmente; a segunda é vinculada ao transporte de escravos em navios que saiam da África e iam para diversas partes do mundo, cujo ápice ocorreu no século XIX no Brasil. Trata-se de uma visão muito restrita do fenômeno, influenciada pelo enfoque de determinadas campanhas em somente uma das facetas do tráfico de pessoas, pelo tratamento dado pela legislação brasileira à essa matéria e pelo passado do nosso país.

A definição mais difundida de tráfico de pessoas é oriunda do Protocolo de Palermo, ratificado pelo Brasil junto à ONU em janeiro de 2004 e internalizado em março do mesmo ano, com o Decreto n. 5.017. Por ser um tratado internacional de direitos humanos, considerando a hierarquia das normas, o Protocolo está abaixo da Constituição mas acima das leis e normas inferiores do texto constitucional.

O conceito de tráfico de pessoas estabelecido no Protocolo de Palermo demanda a coexistência de uma ação, de um meio e de uma finalidade de exploração para a sua caracterização. As ações elencadas são: recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de pessoas. Os meios listados para a execução da ação podem ser: ameaça, uso da força, outras formas de coerção, rapto, engano, abuso de autoridade ou situação de vulnerabilidade. As finalidades da exploração indicadas são: a prostituição, outras formas de exploração sexual, trabalho forçado, escravatura, servidão e remoção de órgãos. Deve-se destacar ainda que não se pressupõe a saída de um país e a entrada em um outro, uma vez que o tráfico de pessoas pode ser internacional ou interno.

Assim, nota-se que o conceito de tráfico de pessoas atualmente vigente no Brasil é muito mais amplo e complexo do que as imagens que a maior parte da população associa de forma imediata a esse fenômeno. Isso produz diversas implicações negativas, sendo que a principal é a dificuldade do reconhecimento de outras faces do tráfico de pessoas, fato que cria obstáculos tanto para a identificação do problema, como para a adoção de políticas de prevenção e repressão.

Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o tráfico de pessoas movimenta aproximadamente 32 bilhões de dólares por ano. Ainda, a OIT coloca que se trata de uma violação de direitos humanos que já atingiu 2,5 milhões de pessoas no mundo, sendo que 57% esteve envolvido com o tráfico de pessoas para fins de trabalho escravo.

Em 2014, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) publicou dados a respeito dos procedimentos judicias e extrajudiciais do Ministério Público Brasileiro relacionadas ao tráfico de pessoas a partir da consolidação de informações dos anos 2000 a 2013. Dos 1.758 procedimentos identificados, 1.348 tratavam do tráfico de pessoas para fins de trabalho escravo.

É importante pontuar que a menção a trabalho escravo feita nos dados apresentados pelo CNMP não abrange somente o caso de restrição de liberdade, mas todas as situações previstas no art. 149 do Código Penal, que são as seguintes: trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes e jornada exaustiva. Considerando que essas quatro hipóteses são consideravelmente identificadas a partir do recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de trabalhadores, nota-se uma grande inter-relação entre os conceitos de tráfico de pessoas e de trabalho escravo. Outra questão que os aproxima é que, normalmente, em ambos os casos o trabalhador está em situação de vulnerabilidade.

Apesar da mencionada inter-relação, a associação entre tráfico de pessoas e trabalho escravo contemporâneo não está disseminada pela sociedade. Corroboram essa afirmação os dados do Disque-Denúncia de Direitos Humanos da Presidência da República, que aponta a realização de 266 registros de trabalho escravo e 28 de tráfico de pessoas no ano de 2012. Portanto, percebe-se que há um grande caminho a ser percorrido para o combate ao tráfico de pessoas no Brasil.

No próximo 30 de julho, Dia Mundial de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, a principal tarefa colocada é a difusão do conceito desse ilícito para a população, de forma viabilizar a sua identificação e a realização de denúncias para o Poder Público. Desta forma será possível mensurar a dimensão do problema no país e, consequentemente,conceber políticas públicas adequadas com o objetivo de resguardar a dignidade da pessoa humana e de não permitir que o trabalho seja tratado como mercadoria.

*RENAN BERNARDI KALIL é Procurador do Trabalho em Mato Grosso (MPT/MT) e Mestre em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP)

Artigo publicado originalmente no jornal A Gazeta do dia 27/07/2015

Foto de capa: Rui Gaudência/ Público.pt

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