Artigo: O maluco da chave de fenda

27/06/2016 - Nesse tempo estranho, em que são aplaudidos discursos de autoridades que fazem a defesa da terceirização, o título desse texto poderia ser “Dublê de eletricista”, ou “O super-herói com o cinturão do alicate”.

Chaves de fenda e alicates são as ferramentas mais manuseadas por eletricistas. De certa forma, identificam esses profissionais que desafiam as alturas e as altas voltagens, portam cinturões que prendem e organizam as ferramentas junto ao corpo, sempre à mão. Esse era o sonho de Lúcio Nery.

Lúcio Nery era um curioso candidato a operário. Achava “bonito” os amigos (ajudantes de eletricista) que desciam do caminhão em seu bairro com alicates e chaves de fenda. Sempre teve vontade de ostentar aquela pose. Foi contratado e começou a subir em poste na mesma semana. Sem treinamento.

Nas sessões de julgamento de tribunais de regiões em que ocorrem muitos acidentes do trabalho incomoda a insistência na tese defensiva das empresas quanto à prática de ato inseguro pelo empregado falecido; a culpa exclusiva da vítima; e/ou a falta de cuidado dos operários no desempenho de atividades perigosas.

No final de 2012 o Tribunal Superior do Trabalho - TST publicou matéria específica sobre o tema e o setor elétrico. Registrou que, claro, os acidentes também podem atingir empregados próprios. Todavia, registrou que o que vinha assustando era a desproporção do dano entre os terceirizados e empregados. Registrou que a taxa de mortalidade entre os terceirizados era três vezes superior.

O Ministro Vieira de Mello Filho, do TST, diz que a Justiça Trabalhista tem presenciado um crescimento enorme no número de acidentes no setor elétrico envolvendo terceirizados.

A reportagem é ilustrada com um caso em que o trabalhador perdeu “todo o braço direito, o braço e a mão esquerda ficaram inutilizados, perdeu um testículo e ainda teve queimaduras por todo o corpo, inclusive no pênis”. Levou um choque de 13 mil volts.

No caso do setor elétrico, em geral, são grandes obras públicas contratadas por meio de processos licitatórios em que as concorrentes precisam comprovar capacidade técnica e a experiência. Presume-se que seus próprios empregados, profissionais qualificados e treinados, executarão as tarefas.

Os resultados práticos evidenciam que as atividades são realizadas por empresas de terceirização. O serviço perigoso é feito por terceirizados. Operários desqualificados, por vezes semianalfabetos, sem treinamento, e ganhando por produção. Esse último dado incrementa o risco, pois a preocupação com a velocidade do trabalho, somada à ignorância dos riscos, potencializa os acidentes graves.

Como a situação do terceirizado é menos segura, quanto ao vínculo de emprego, há maior vulnerabilidade e maior probabilidade de assumir tarefas heroicas: afinal, estamos falando de um super-herói que tem até cinturão!

Como a situação é precária, e o sujeito ignora a real dimensão dos riscos (talvez 13 mil volts), há maior probabilidade de atos que comprometem a segurança do agente e de seus colegas de infortúnio: afinal, estamos falando de um maluco com uma chave de fenda, pendurado num poste, próximo a cabos de alta tensão!

No documentário “Dublê de eletricista” é possível acompanhar, em 20 minutos, a narrativa com depoimentos de funcionários da Companhia Energética de Minas Gerais que relatam as características do trabalho em contato direto com os perigos da rede elétrica. O documentário se aprofunda na questão do treinamento do pessoal, especificamente dos terceirizados. Há algumas cenas e revelações fortes. Podem chocar quem eventualmente concorda com os discursos em prol da “modernização das relações de trabalho”.

Na fala da vítima, o ex-curioso candidato a operário, Lúcio Nery, quase é possível ouvir a música tema do Super-Homem. O olhar dele viaja na idealização dos amigos que, triunfantes, ostentavam seus cinturões com coldres de alicates e chaves de fenda.

Ao invés de heróis, malucos, insensatos ou inconsequentes, seriam kamikazes os destemidos eletricistas?

*LEOMAR DARONCHO é Procurador do Trabalho

Artigo originalmente publicado no Jornal A Gazeta do dia 27/06/2016 

Imprimir