Artigo: Crédito Consignado

Por Leomar Daroncho*

28/09/2015 - Enquanto não se soluciona o antigo impasse acerca da relação existente entre o dinheiro e a felicidade, não parece difícil constatar que a falta de recursos e o consequente endividamento das famílias têm feito a alegria de setores do mercado financeiro.

No começo deste ano, o Banco Central do Brasil (BC) apontou o maior endividamento das famílias com o setor financeiro. Segundo o BC, o endividamento chegou a 46,3% em abril de 2015. Portanto, quase metade da renda das famílias brasileiras está comprometida com dívidas. Esse é o maior percentual desde o início da pesquisa, em 2005.

Já os dados da Confederação Nacional do Comércio (CNC) indicam que em abril de 2015 o percentual de famílias endividadas chegou a 61,6%. Segundo esse levantamento, dívidas com cheque pré-datado, cartão de crédito, cheque especial, carnês, empréstimo pessoal e prestações variadas afligem seis em cada 10 famílias brasileiras.

Embora já existissem modalidades de empréstimo com desconto em folha de pagamento, a edição da Medida Provisória n.º 130/2003 trouxe novo regramento ao instituto, no contexto do pacote de estímulos à economia brasileira. Assim, visou à eliminação de riscos por meio do desconto em folha de pagamento, o que também contribuiria para a diminuição das taxas de juros.

Essa modalidade de empréstimo caiu no gosto dos brasileiros sedentos pelo consumo, especialmente os aposentados e os servidores públicos. A Lei nº 10.820, de 2003, alterada pela Lei nº 13.097, de 2015, ampliou os limites de comprometimento da renda. Com essa modalidade de crédito, já é possível comprometer até 35% da remuneração disponível, sendo 5% destinados exclusivamente para a amortização de despesas contraídas por meio de cartão de crédito.

Além disso, no final de 2014 o prazo dos financiamentos foi ampliado para até seis anos, no caso dos aposentados, e para até oito anos, no caso dos servidores públicos federais.

Os encantos do consignado também seduziram as instituições financeiras. Primeiro as pequenas, depois os grandes bancos. A segurança da autorização – de forma irrevogável e irretratável – para o desconto em folha de pagamento ou na sua remuneração disponível para o pagamento de empréstimos, com juros médios anuais na casa de 40% ao ano, representa um fator importante na rentabilidade de um dos setores mais viçosos de nossa economia, com crise ou sem ela.

Há questionamentos à legislação que instituiu a concessão de crédito consignado. A Constituição Federal protege o salário e afirma ser crime sua retenção dolosa. Dessa maneira, a Lei nº 10.820/03 teria viabilizado uma forma camuflada das instituições financeiras burlarem a restrição legal à impenhorabilidade de salários e pensões. Segundo esse entendimento, o princípio da proteção do caráter alimentar da renda do trabalho deveria prevalecer sobre os descontos em folha de pagamento.

Os tribunais, entretanto, vêm reconhecendo a regularidade dessa modalidade de crédito que, aliada a outras formas de endividamento e à falta de educação financeira da parcela mais vulnerável da população, conduz aos riscos do superendividamento das famílias mais pobres.

Esse mecanismo de incentivo ao desenvolvimento econômico apresenta limites, e os sinais de provável esgotamento já são preocupantes.

O cineasta e escritor Woody Allen formulou uma expressão bastante conhecida para a sensação imediata de felicidade provocada pelo dinheiro: "O dinheiro não traz felicidade, mas provoca uma sensação tão parecida que é necessário um especialista para verificar a diferença...".

O dilema do crédito consignado está no comprometimento da renda familiar, por prazo excessivamente longo e em percentual demasiadamente gravoso, normalmente com sucessivas renovações, fazendo com que o devedor tenha muitos anos para lamentar uma dívida em relação à qual sequer pode especular a possibilidade de não pagar.

Em algum momento o infeliz endividado aprenderá, duramente, o sentido da expressão “de forma irrevogável e irretratável” da autorização de crédito que, num passado distante, acenara de forma tão tentadora.

*LEOMAR DARONCHO é Procurador do Trabalho em Mato Grosso

Artigo originalmente publicado no Jornal A Gazeta do dia 28/09/2015

Imprimir