Grupo econômico familiar de MT é condenado a pagar R$ 6 milhões por trabalho escravo

O processo será encaminhado à AGU para providências relativas ao pedido de expropriação, formulado pelo MPT, de propriedades da família

05/10/2018 - A Fazenda Santa Laura Vicuña, localizada no município de Nova Santa Helena, norte de Mato Grosso, sete sócios e outras três empresas do grupo familiar Xavier (Agropecuária Princesa do Aripuanã Ltda., a SSB-Administração e Participações Ltda. e a BX Empreendimentos e Participações) foram condenados solidariamente pela Justiça do Trabalho pela prática de trabalho análogo ao de escravo.

Juntos, Bruno Pires Xavier, Cyro Pires Xavier, Gláucia Pires Xavier Cardone, Rosana Sorge Xavier, Sebastião Douglas Sorge Xavier, Susete Sorge Xavier e Silvia Margarida Américo Pires Xavier deverão pagar uma indenização de R$ 6 milhões por danos morais coletivos. O valor será revertido a instituições filantrópicas indicadas pelo Comitê Multi-Institucional de Colíder, para que atenda às necessidades da comunidade lesada.

Nas cinco operações já realizadas em propriedades da família Xavier, 324 trabalhadores foram resgatados de condições análogas às de escravo. Dois dos filhos de Sebastião Bueno Xavier, o patriarca, figuraram na ‘Lista Suja’ do trabalho escravo mantida pelo governo federal. Em julho de 2009, Rosana Sorge Xavier foi incluída por submeter 16 trabalhadores rurais a condições degradantes de trabalho na Fazenda Santa Luzia. Essa propriedade já havia sido incluída no cadastro anos antes, quando estava sob a responsabilidade de seu irmão Sebastião Douglas Sorge Xavier.

Dados do Observatório Digital de Trabalho Escravo mostram que Mato Grosso é o segundo colocado no ranking nacional do trabalho escravo. De 2003 a 2017 foram 4.356 trabalhadores resgatados. Ainda segundo o Observatório, o município de Confresa, também na região norte do estado, é o campeão nacional em número de resgates: 1.348.

A decisão foi proferida no dia 2 de outubro pelo juiz Mauro Roberto Curvo, da Vara do Trabalho de Colíder. Além da indenização, os condenados serão obrigados a cumprir quase 60 obrigações de fazer e não fazer para regularizar o ambiente de trabalho, sob pena de multa diária de 10 mil reais por item descumprido em relação a cada trabalhador encontrado em situação irregular. O magistrado também determinou o encaminhamento do processo ao Ministério Público Federal e à Polícia Federal, para apuração do crime previsto no artigo 149 do Código Penal.

Ao analisar o pedido de expropriação para fins de reforma agrária da fazenda Santa Laura Vicuña e dos imóveis de propriedade da família Xavier, Curvo determinou, diante da comprovação da exploração de trabalho escravo, a remessa do processo à AGU (Advocacia Geral da União) e ao Ministério do Desenvolvimento Agrário e Desenvolvimento Social, para as providências que entenderem necessárias.

A medida tem fundamento no artigo 243 da Constituição Federal, segundo o qual “as propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”.

O trabalho escravo afronta direitos fundamentais consagrados pelo Brasil, como a dignidade da pessoa humana, o valor social do trabalho, o princípio da valorização do trabalho humano e função social da propriedade, e demanda, portanto, a atuação do Estado com o objetivo de impedir e reprimir qualquer violação desses direitos. Pontuou o magistrado que a “função social da propriedade é atendida quando o empregador promove ao trabalhador o acesso ao Trabalho Decente”.

Para o MPT, “no presente caso, não se está diante de uma mera fazenda que desenvolve, normalmente, suas atividades. É um caso de resgate de trabalhadores num ambiente de empregadores reincidentes, por décadas, em trabalho escravo. O que se tem é a perpetuação de uma lesão por parte de um importante grupo familiar, o qual deve sofrer a justa sanção como forma de se impedir, de vez, a contumácia infratora”.

Entenda o caso

A ação foi ajuizada no ano passado pelo MPT após o resgate de 23 trabalhadores em condições análogas às de escravo na fazenda Santa Laura Vicuña – Fazendas Reunidas, incluindo uma grávida de oito meses e um adolescente de 17 anos. A petição inicial foi assinada pelo procurador-geral do Trabalho Ronaldo Fleury e pelos procuradores Tiago Muniz Cavalcanti, à época coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete) do MPT, Catarina Von Zuben, atual coordenadora nacional da Conaete; e Lys Sobral Cardoso, coordenadora regional da Conaete do MPT em Mato Grosso (23ª Região).

“(...) os 23 trabalhadores resgatados viviam e laboravam em condições degradantes e subumanas, sendo tratados pelos responsáveis da fazenda como coisa e não como pessoa, tanto que a policial rodoviária federal, Sra. Augusta Machado Tamasauskas, quando ouvida, disse que, ‘atuando como policial, já participou de vistorias de inúmeros estabelecimentos rurais e acredita que essa foi a pior situação flagrada por ela em relação ao tratamento dispensado pelo empregador em relação aos empregados, especialmente considerando o grande porte da fazenda’. De mais a mais, com base em relatórios obtidos junto ao Ministério de Trabalho e Emprego, o Ministério Público do Trabalho comprovou que em outras propriedades dos reclamados tiveram trabalhadores resgatados”, pontuou o juiz Mauro Curvo na sentença.

No local havia criação de gado bovino de corte e plantio de arroz. As vítimas eram designadas para atividades de lavoura (roço, aplicação de agrotóxicos, catação de raízes), serralheria e construção civil. Próximo ao alojamento onde estavam instalados havia, sem qualquer isolamento, várias bombas de veneno. Em torno delas ciscavam as galinhas que serviriam, em algum momento, de alimentação para as vítimas. Um menino de dois anos, filho da trabalhadora gestante, também costumava brincar perto do local.

Conforme constatado pela fiscalização, era a trabalhadora grávida quem lavava a roupa utilizada pelo companheiro para “bater” veneno. Os proprietários não forneciam uniformes e equipamentos de proteção para os empregados executarem esse e outros serviços.

A água disponibilizada em poço artesiano tinha gosto de lama e ferrugem e faltavam banheiros no local de trabalho. As necessidades fisiológicas eram feitas no mato ou em uma fossa comunitária tampada com folhas de bananeiras. O banho era tomado no rio. As camas eram improvisadas em colchões finos e velhos e alguns trabalhadores “preferiam” dormir em rede armada na mangueira, em razão do calor no interior do alojamento. Faltava energia elétrica no local, e o gerador era utilizado apenas alguns minutos por dia, já que os empregados é que deveriam pagar o combustível.

Uma pia, localizada num ponto chamado de “cozinha”, despejava água diretamente no solo. A vinte metros dali, havia um buraco usado para descarte de lixo (material orgânico, fraldas, embalagens de veneno, etc) que deixava o ambiente com um cheiro absolutamente insuportável.

Durante da operação, Marinaldo Veras Cavalcante, gerente da fazenda, foi conduzido à Polícia Federal e teve a prisão em flagrante decretada. O Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) descobriu, durante o resgate, que um ex-empregado da propriedade, Terezinho Ribeiro Correa, fora esfaqueado por outro trabalhador e não teve qualquer amparo dos donos. Ele laborou na fazenda por cerca de um mês, em 2016, sem receber nenhum pagamento.

Grupo econômico

O juiz deferiu o pedido do MPT para condenação solidária dos réus, afirmando ser inquestionável a formação de grupo econômico entre os familiares, pois o quadro societário da fazenda, ao longo dos anos, sempre foi formado por irmãos, um sobrinho e uma ex-cunhada. “(...) inclusive com alternância entre si, o que indica a integração interempresarial entre eles e a existência de interesses comuns do grupo familiar, ficando nítida a existência de administração/gestão coligada, o que autoriza a responsabilização solidária para fins trabalhistas”.

Sebastião Douglas Sorge Xavier, apesar de não aparecer nos quadros societários da empresa e nem ser o proprietário da Fazenda Laura Vicuña pelo menos desde 2001, quando doou a propriedade rural aos filhos, é quem, efetivamente, de acordo com os depoimentos dos trabalhadores resgatados, administra o local. "Quando Sebastião Douglas Sorge Xavier, Rosana Sorge Xavier e Suzete Jorge Xavier passaram a ser acionados em todas as esferas judiciais, como salvaguarda dos bens, cuidaram de transferir aos filhos e sobrinhos a propriedade dos bens que possuíam. Também, em relação às pessoas jurídicas da família, passou-se a promover incontáveis alterações contratuais, como forma de mascarar a propriedade das empresas”, relatou o MPT na ação.

“Chama a atenção deste Juízo que a doação se deu com a inserção de cláusulas de impenhorabilidade e incomunicabilidade, o que demonstra que o Sr. Sebastião Douglas nunca deixou de ser proprietário de fato da fazenda Santa Laura Vicuña e se valeu de tais cláusulas para manter o seu patrimônio incólume”, afirmou o juiz Mauro Curvo na sentença.

De acordo com o magistrado, o valor da indenização por danos morais coletivos de R$ 6 milhões foi fixado considerando a capacidade financeira do grupo, a gravidade dos fatos comprovados pelo MPT, o dolo por parte do proprietário/administrador, que sabia da situação subumana em que os trabalhadores eram mantidos; a reincidência na prática de trabalho em condição análoga à de escravo, bem como o caráter pedagógico, compensatório e punitivo da medida.

Da decisão cabe recurso ao Tribunal Regional do Trabalho.

Veja fotos do resgate

Processo 0000450-57.2017.5.23.0041

Informações: Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso (MPT-MT)

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