MPT Entrevista: procuradora do Trabalho fala sobre combate ao trabalho escravo

27/01/2014 - Estima-se que, no Brasil, 25 a 100 mil pessoas trabalhem em condições que desrespeitam sua dignidade, tanto nas regiões rurais quanto urbanas. E o Estado de Mato Grosso é um dos que lideram o ranking.

Nesta terça-feira, dia 28 de janeiro, o Brasil se mobiliza para o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. A data, oficializada em 2009, é uma homenagem aos auditores fiscais do Trabalho Erastóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva, e ao motorista Ailton Pereira de Oliveira, que, no ano de 2004, foram assassinados quando apuravam denúncia de trabalho escravo na zona rural de Unaí, em Minas Gerais.

No entanto, apesar das notícias de violência e crueldade terem repercutido em todo o país e alertado a sociedade para a triste realidade que assombra o campo e a cidade, a luta contra o trabalho escravo é mais antiga e, ao contrário do que muitos podem afirmar, não teve fim com a assinatura da Lei Áurea, em 1888. “Sua natureza econômica difere da escravidão da Antiguidade clássica e daquela que aqui existia durante a Colônia e o Império, mas o tratamento desumano, a restrição à liberdade e o processo de coisificação do ser humano são similares”, lembrou Leonardo Sakamoto no texto 'Lei Áurea, 125 anos: a “reinvenção” do trabalho escravo no Brasil', publicado no ano passado. 

Estima-se que, no Brasil, 25 a 100 mil pessoas trabalhem em condições que desrespeitam sua dignidade, tanto nas regiões rurais quanto urbanas. E Mato Grosso é um dos que lideram o ranking dos casos de trabalho escravo. Em dezembro, quando o Ministério do Trabalho e Emprego divulgou a atualização da relação com os nomes dos empregadores flagrados utilizando mão de obra escrava, a chamada “Lista Suja”, o Estado ficou em segundo lugar. Ou seja, mesmo com os avanços obtidos nos últimos anos, ainda há muito a ser feito.

Nesta entrevista, a procuradora do Trabalho Ana Gabriela Oliveira de Paula, vice-coordenadora regional da Coordenadoria Nacional de Combate ao Trabalho Escravo (CONAETE) do Ministério Público do Trabalho (MPT), esclarece dúvidas acerca do aliciamento e resgate dos trabalhadores, bem como das penalidades previstas para quem comete o crime, e fala da necessidade de um trabalho em conjunto para combater essa prática. “É importante divulgar os casos para mostrar à população que, infelizmente, essa prática abominável ainda existe e, por isso, deve ser combatida por toda a sociedade, proporcionando, assim, um apoio social à atuação dos entes governamentais nesse processo de erradicação do trabalho escravo”.

Confira a íntegra da entrevista:

1) De acordo com dados da OIT, diariamente 25 mil pessoas exercem atividades consideradas como trabalho escravo. Como é caracterizado o trabalho escravo na atualidade?

Ana Gabriela Oliveira de Paula - A concepção mais moderna de trabalho escravo e que melhor se adequa ao disposto no artigo 149 do Código Penal é a que entende como tal o trabalho realizado em condições que ofendem a dignidade humana. Isso significa submeter trabalhadores a condições degradantes de trabalho (alojamento em barracos de lona, não fornecimento de água potável, fornecimento de alimentação inadequada ou insuficiente, exposição a condições sanitárias e de higiene impróprias), a jornadas que, por sua extensão ou intensidade, esgotam as forças do trabalhador, à servidão por dívida, ao trabalho forçado, ao cerceamento de liberdade, à violência física ou psicológica, à retenção de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, ao isolamento geográfico ou étnico-social ou a limitações de acesso a meios de locomoção.

2) Como os trabalhadores são aliciados? Qual o perfil dessas vítimas? O que acontece com os trabalhadores resgatados das situações de escravidão?

Ana Gabriela Oliveira de Paula - Em geral, os trabalhadores são abordados em suas cidades de origem pelos chamados "gatos" com ofertas de emprego em outras regiões que, em princípio, aparentam ser bastante vantajosas. É comum que esse gato ofereça aos trabalhadores um adiantamento de salário para que deixem com suas famílias. Contudo, ao chegar ao local de trabalho, o trabalhador verifica que o que foi prometido está longe da realidade, seja porque lhe são cobrados os valores do transporte, do alojamento, alimentação e etc, seja porque as condições de trabalho são as piores e mais desumanas possíveis.

As vítimas do aliciamento são, em geral, pessoas com pouca escolaridade, muitas vezes analfabetos e com baixa renda familiar.

Aos serem resgatados, esses trabalhadores recebem a sua CTPS com o tempo de serviço anotado e têm direito a um seguro-desemprego de até três meses. Caso seja possível um acordo extrajudicial com o empregador, esse trabalhador também já recebe suas verbas rescisórias. Não sendo possível esse acordo, o Ministério Público do Trabalho ou qualquer outro legitimado pode ajuizar a Ação Civil Coletiva com esse objetivo. Ao trabalhador também é oferecida a oportunidade de retornar à sua cidade de origem, caso seja de seu interesse. No Estado do Mato Grosso, há também um projeto, chamado "Ação Integrada", que objetiva a qualificação educacional e profissional desses trabalhadores proporcionando a sua reinserção no mercado de trabalho.

3) O que acontece com o empregador que é flagrado praticando tal crime? E o que acontece com os aliciadores (famosos gatos) e outros funcionários do local que compactuam com o trabalho escravo? (por exemplo, o “capataz”, o dono da “venda”).

Ana Gabriela Oliveira de Paula - A redução de trabalhador à condição análoga à de escravo é crime previsto no artigo 149 do Código Penal, assim, todo aquele que pratica o crime ou que participa na consumação desse crime será processado criminalmente perante a Justiça Federal, podendo ser condenado à pena de reclusão de 2 a 8 anos, que pode ser aumentada de metade se o crime for cometido contra criança ou adolescente ou por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

No âmbito civil, essas pessoas também serão processadas para que sejam obrigadas a não mais repetir essa abominável conduta e para que paguem uma indenização pelo dano moral causado à sociedade. Esse processo é conduzido pelo Ministério Público do Trabalho na Justiça do Trabalho.

4) O projeto “Ação Integrada”, que foi elogiado pelo diretor da OIT, Guy Ryder, já beneficiou mais de 400 trabalhadores e alguns, inclusive, trabalham nas obras da Copa do Mundo. Qual o objetivo do projeto e como surgiu a ideia?

Ana Gabriela Oliveira de Paula - O projeto surgiu da observação de que muitos trabalhadores eram resgatados mais de uma vez em operações de combate e ao trabalho escravo, ou seja, que havia um círculo vicioso; o trabalhador era resgatado e quando terminava o dinheiro recebido quando do resgate, ele, por ter baixa escolaridade e não possuir qualquer qualificação profissional, acabava vulnerável a um novo aliciamento. Assim, verificou-se a necessidade de qualificação educacional e profissional desses trabalhadores, com o objetivo de quebrar esse círculo e evitar um novo aliciamento e, por isso, e com esse objetivo, nasceu o projeto "Ação Integrada", em uma iniciativa conjunta do Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso e da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego em Mato Grosso. Essas duas instituições estão em fase de disseminação desse mesmo projeto, adaptado a cada realidade local, aos demais Estados do país.

5) O Estado de MT está em segundo lugar na Lista Suja divulgada no final do ano passado, apresentando 65 empregadores flagrados utilizando mão de obra escrava. Como o empregador tem seu nome adicionado e, posteriormente, retirado dessa relação?

Ana Gabriela Oliveira de Paula - Autuado pelo Ministério do Trabalho e Emprego por redução de trabalhadores à condição análoga à de escravo, o empregador sofre um processo administrativo, em que lhe é permitida ampla defesa. Encerrado esse processo e mantida a autuação, há a inscrição desse empregador na chamada "Lista Suja do Trabalho Escravo", e este passa, a partir de então, a ter graves restrições comerciais. Após dois anos de monitoramento direto ou indireto, caso não haja reincidência no crime e sejam pagas as multas decorrentes dos autos de infração lavrados na ação fiscal, o nome do empregador é retirado da lista.

6) No ano de 2013, o MPT/MT atuou ativamente paras coibir irregularidades praticadas pelas empresas do setor da construção civil e pesada, especialmente aquelas que executam obras da Copa; pelos frigoríficos, e até mesmo pelo Estado, pela condição insalubre a que submete seus funcionários nos presídios. Com relação ao trabalho escravo, como está a atuação do MPT em MT?

Ana Gabriela Oliveira de Paula - Em relação ao trabalho escravo, quando há denúncias, o MPT, em conjunto com o MTE e a Polícia Federal ou Rodoviária Federal organizam operações com o objetivo de flagrar as situações de trabalho escravo, resgatar os trabalhadores e punir os responsáveis. Além disso, por meio de destinações de verbas decorrentes de ações civis públicas e termos de ajuste de conduta, tem patrocinado programas de conscientização da população e qualificação de trabalhadores, tais como o "Ação Integrada".

7) Quais os maiores desafios encontrados no combate ao trabalho escravo no Estado?

Ana Gabriela Oliveira de Paula - Os maiores desafios encontrados são a vasta extensão territorial do Estado, bem como o aumento da dificuldade de acesso aos novos locais objeto de denúncias, o que decorre da crescente expansão agrícola para áreas ainda sem estrutura de estradas para acesso. Além disso, também é um grande desafio qualificar educacional e profissionalmente a população mais carente do Estado, de modo a que estas pessoas não fiquem vulneráveis ao aliciamento. Os baixos valores das indenizações em danos morais individuais e coletivos fixados pelo Judiciário Trabalhista, a falta de apoio à fiscalização do trabalho e a necessidade de maior número de auditores e procuradores.

8) Como está a aprovação da Emenda Constitucional que determina a expropriação de terras onde é flagrado o trabalho escravo? Quais grupos são contrários à PEC e negam a existência da prática no país?

Ana Gabriela Oliveira de Paula - Infelizmente, a aprovação da emenda anda a passos lentos. Essa Emenda já tramita há mais de 14 anos, desde 1999 e, no início de dezembro do ano passado retornou à Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal para discutir emenda apresentada em Plenário pelo Senador Sérgio Souza (PMDB-PR) que trata do conceito de trabalho escravo. A Bancada Ruralista no Congresso Nacional é o grupo que tem criado mais empecilhos à aprovação da PEC.

9) Como denunciar a prática do trabalho escravo? Qual o papel dos outros poderes públicos no combate ao trabalho escravo?

Ana Gabriela Oliveira de Paula - A prática do trabalho escravo pode ser denunciada ao Ministério Público do Trabalho por meio de formulário próprio no site www.prt23.mpt.gov.br , pelo telefone (65) 3613-9100 ou pessoalmente em qualquer das unidades instaladas em todas as capitais do país e no interior dos Estados. No Mato Grosso, as cidades que possuem unidade do Ministério Público do Trabalho são Cuiabá, Água Boa, Alta Floresta, Cáceres, Rondonópolis e Sinop.

Além disso, podem ser apresentadas denúncias ao Ministério do Trabalho e Emprego e ao Disque 100 da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

Além do Ministério Público do Trabalho, trabalham na erradicação do trabalho escravo o Ministério Público Federal, processando os empregados flagrados na área criminal, o Ministério do Trabalho e Emprego, em seu papel fiscalizador dos empregadores e orientador dos empregados, e as polícias locais e federais, que muito auxiliam nas operações de resgate e investigações de denúncias.

10) Como a senhora vê o papel da imprensa no combate a esse tipo de crime?

Ana Gabriela Oliveira de Paula - A imprensa exerce um papel extremamente importante ao esclarecer à população o que é o trabalho escravo, como ocorre o aliciamento dos trabalhadores e quais os meios de denúncia. Além disso, também é importante divulgar os casos para mostrar à população que, infelizmente, essa prática abominável ainda existe e, por isso, deve ser combatida por toda a sociedade, proporcionando, assim, um apoio social à atuação dos entes governamentais nesse processo de erradicação do trabalho escravo.

Informações: Ministério Público do Trabalho (MPT)

Contato: (65) 3613-9152 | www.prt23.mpt.mp.br | twitter: @MPT_MT

 

 

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