Artigo | Cavalo de Padeiro

Por Leomar Daroncho*

Um amigo, jovem há muito tempo, traduz longas explicações em assertivas que condensam o conhecimento de quem já viu e viveu muita coisa. São expressões que simplificam e perpetuam verdades universais a partir do olhar regional, no caso o interior gaúcho. Algo como o que li na apresentação de uma obra do Frei Betto: “A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam”.

Numa dessas deliciosas sabedorias meu bom, sábio e velho amigo marca as coisas que não mudam com a expressão “Cavalo de Padeiro”. Dá a isso o sentido da rotina da época em que o padeiro entregava pão, diariamente, com uma charrete. Seguia sempre o mesmo trajeto. Tão acostumado estava à rotina que não era necessária orientação alguma. Dispensava-se o chicote ou o comando. Qualquer mudança de percurso, ao contrário, exigia um grande esforço.

No mundo jurídico, particularmente nas questões afetas aos direitos sociais, causa incômodo a quem pensa de forma crítica verificar que, apesar de termos tido, formalmente, substancial guinada no nosso modelo de organização social na Constituição de 1988, os conflitos seguem sendo interpretados e os direitos definidos com base numa compreensão anterior, muitas vezes acanhada e contrária ao texto constitucional.

Nos conflitos trabalhistas, há sistemática resistência em avançar na interpretação. Resiste-se com notável apego a um modelo ultrapassado – interpretação retrospectiva, com leitura apenas parcial, seletiva e conveniente da Constituição. É uma via que ignora que até mesmo no moderno Direito Civil a liberdade de contratar está atrelada aos fins sociais do contrato, com destaque para os princípios da boa-fé e da probidade. É uma via que nos afasta do objetivo de construir “uma sociedade livre, justa e solidária”.

A jurisprudência consolidada do TST mantém exemplos de entendimentos indiferentes à Constituição, como o que continua admitindo a “hora extra” habitual (o TST mantém 55 enunciados de jurisprudência que disciplinam, de alguma forma, as consequências da prestação habitual de “horas extras”) e o trabalho rotineiro em ambiente insalubre, mediante paga, apesar do destaque constitucional à dignidade da pessoa humana e à saúde. 

A interpretação tradicional, quando se apega a velhos valores e a paradigmas superados, frustra os propósitos do constituinte. Mas quando essa corrente está quieta, é sinal de que a Constituição cumpre o indigno papel de mera paisagem, sem incomodar ninguém.

Nesse sentido, e sendo bem otimista, é um alento ver que o agrupamento político que representa os interesses mais atrasados e tradicionalmente beneficiados, inclusive no Judiciário, mobilize-se e reaja às iniciativas de valorização do trabalho humano e de redução das desigualdades, como determina a Constituição.

Quando não temos isso, temos o marasmo e a calmaria do Cavalo de Padeiro que segue seu trote de modo inferente, sem incomodar os beneficiados de sempre.

*LEOMAR DARONCHO é Procurador do Trabalho

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