Artigo: O "nove dedos"

Por Thiago Gurjão Alves Ribeiro*

04/04/2016 - Se o leitor esperava um texto fazendo troça da amputação do dedo de um certo ex-Presidente da República, lamento desapontá-lo; mas já que está aqui, fica o convite a percorrer mais algumas linhas. Já falaremos dele. O personagem inicial, porém, é outro e, infelizmente, perdeu mais que um dedo.

William Garcia da Silva, que tinha então 24 anos e uma filha de oito meses, trabalhava em uma unidade da JBS em Coxim, Mato Grosso do Sul. Segundo consta em publicação da "Repórter Brasil", ele tinha alertado seus superiores quanto à falta de grades para isolar componentes perigosos de uma máquina de moagem de ossos e chifres.

Em 22 de janeiro de 2015, quando limpava as engrenagens da moedeira, seu braço foi tragado pela moedeira. A rosca amputou seu braço acima do cotovelo. Ainda de acordo com o relato de William, ele não teria recebido treinamento para a função e teria sido designado para fazer a limpeza das máquinas em substituição a colegas demitidos.

Infelizmente casos como o de William são muito frequentes. Porém, salvo uma reportagem aqui e acolá, quase nunca são lembrados na grande imprensa brasileira sob a perspectiva da vítima. Suas histórias são contadas em trabalhos como o documentário "Carne e Osso" e publicações de organizações independentes como a "Repórter Brasil". Talvez essas histórias não sejam boas para vender jornal ou incrementar a audiência - ou, talvez mais importante, não devem influenciar positivamente as receitas publicitárias dos veículos de comunicação...

Cotidianamente milhares de trabalhadores encontram no ambiente de trabalho a amputação, a doença, o acidente, a morte. Os dados oficiais revelam que entre 2007 e 2013 ocorreram mais de 5 milhões de acidentes e mais de 100 mil trabalhadores ficaram permanentemente incapacitados para o trabalho no país.

No mesmo período foram registradas mais de 19 mil mortes, dados que levam o Brasil ao quarto lugar no mundo em estudo divulgado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Mas uma pesquisa realizada pelo IBGE em parceria com o Ministério da Saúde aponta o subdimensionamento desses dados e estima a ocorrência de 4,9 milhões de acidentes de trabalho apenas em um ano, entre 2012 e 2013.

Tais números e relatos, ao que parece, não têm sido suficientes para sensibilizar boa parte da população brasileira sobre essa tragédia, o que é necessário para que tenhamos uma mudança de paradigma cultural, voltada à proteção coletiva no trabalho, bem como para que se tenha a devida cobrança pela população em relação aos atores públicos e privados que podem atuar para a redução desse número.

No atual momento conturbado do país, diversas referências em páginas da internet e redes sociais fazem pejorativa alusão, explícita ou implicitamente, ao fato de Lula ter nove dedos. Como se sabe, ele perdeu o dedo mínimo da mão esquerda aos 18 anos, após uma lesão por esmagamento em uma prensa, o que levou à respectiva amputação. Continuou a trabalhar como metalúrgico, como ocorre com aqueles que têm condições físicas de fazê-lo após sofrerem um acidente de trabalho, ainda que com sequelas duradouras ou irreversíveis. Os que sobrevivem, é claro.

Um colunista do jornal "O Globo" publicou nas redes sociais que um agente público com notória atuação na "operação Lava-Jato" se refere, entre amigos, ao ex-Presidente como "Nine". Um Senador da República (Ronaldo Caiado, do DEM/GO), juntamente com diversas pessoas, posou para fotos em que aparece com uma camisa na qual está representada uma marca de mão e dedos (sem o dedo mínimo) sujos de petróleo.

Os comentários explícitos se multiplicam em páginas na internet e redes sociais, desde aqueles que, assim como na camisa usada pelo Senador e (supostamente) a autoridade referida pelo colunista, usam o dedo amputado (os "nove dedos", o apelido "Nine", a mão com quatro dedos...) como apodo ou signo para identificar o ex-Presidente, até os que, explicitamente, fazem piadas com a "perda" (amputação) do dedo.

Não tenho a pretensão de tentar explicar aqui o que leva pessoas supostamente "de bem", em nome de uma "causa justa", a fazerem referência discriminatória às sequelas decorrentes de acidente de trabalho sofrido por um ex-Presidente da República que começou sua trajetória profissional como metalúrgico e, depois, sua vida pública como representante de sua categoria profissional (como dirigente sindical). Ou a razão de determinadas pessoas, ao se manifestarem contra aquilo que reconhecem ser o grande mal do país (a corrupção, por todos reconhecida como nefasta, ao menos em palavras e discursos), fazerem referência a uma marca indelével de uma vítima de um acidente de trabalho. Talvez nem haja muito o que explicar e os fatos falem por si só.

De toda forma, é necessário chamar a atenção para essa tragédia brasileira que, dia após dia, assola trabalhadores em todo o país e que precisa contar com a sensibilização da sociedade como um todo para o problema, o que, parece, lamentavelmente ainda não ocorre com algumas pessoas, já que não hesitam em fazer referência pejorativa à amputação de um dedo de uma conhecida vítima de um acidente de trabalho. E sensibilização e mobilização são fundamentais para que se possa reduzir significativamente os atuais números.

Ante a compreensão binária que muitos têm hoje do debate público no país, espero que uma tentativa de alertar para a tragédia dos acidentes de trabalho no Brasil e conclamar as pessoas a serem sensíveis a esse problema não seja compreendida como estar "defendendo um lado" na disputa político-partidária. Acho que não vivemos tempos tão obscuros assim. Mas se for, paciência. Melhor correr esse risco do que o silêncio cúmplice com a marcha da insensatez.

*THIAGO GURJÃO ALVES RIBEIRO é Procurador do Trabalho em Mato Grosso. 

Artigo originalmente publicado no Jornal A Gazeta do dia 04/04/2016 

 

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