Prosperidade e miséria

Por Leomar Daroncho*

06/07/15 - A cobertura da grande imprensa sobre o desenvolvimento econômico e social em Mato Grosso evidencia uma preocupante contradição.Com frequência o estado é citado como referência de prosperidade, expoente de um Brasil que "dá certo"! São muitas as matérias que o apresentam como o principal produtor de soja e de algodão e dono do maior rebanho bovino do Brasil. No geral, os textos são pontuados por exemplos bem-sucedidos de destemidos empreendedores. E essa realidade é facilmente constatada percorrendo o interior do estado.

Analisando a história do Brasil rural, veremos que os encantos de nossa terra são enaltecidos desde 1.500. Na Carta de Pêro Vaz de Caminha, escrita ao Rei dom Manuel em 1º de maio daquele ano, são descritas as maravilhas do cenário. Águas muitas - infindas - os muitos bons ares - frios e temperados - e a terra graciosa. Da descrição ganhou notoriedade a referência "em se plantando, tudo dá". Naquele contexto, a alegórica descrição consistia numa desculpa por não terem encontrado o que realmente importava: ouro.

Passados cinco séculos da Carta de Caminha, e já tendo sido exaurido o ciclo do ouro, encontrado 200 anos depois dela ter sido enviada, o desenvolvimento da agricultura e da pecuária vem tornando possível outro tipo de eldorado. O interior do Brasil, particularmente o Centro-Oeste, apresenta os sinais da prosperidade do ouro verde. São lavouras e pastagens de proporções inimagináveis para o nosso primeiro escrivão.

De outro lado, a mesma imprensa e os institutos de pesquisas apresentam, regularmente, dados que descortinam as nossas mazelas. Essa realidade também é facilmente constatada andando por nossas regiões mais pobres.

Mato Grosso ostenta dados sofríveis no que diz respeito à educação, além de problemas crônicos na saúde. Os números do saneamento básico apresentados na Síntese de Indicadores Sociais (SIS) de 2013, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, são especialmente chocantes.

Reportagem do G1, em 2013, mostrou que 20,3% das crianças e adolescentes do estado com até 14 anos de idade moram em casas sem abastecimento de água. Analisado especificamente o serviço de esgoto, a deficiência afeta 74,3% das pessoas nessa faixa etária. Sintetizando, parcela superior a 15% das crianças e adolescentes com idade inferior a 14 anos vive em casas sem abastecimento de água, esgoto e sem coleta de lixo. O dado é bem superior à média nacional, que é de 10,2%.

São óbvias as vinculações entre as deficiências do saneamento, que atingem a população como um todo, e o quadro geral do sistema público de saúde, assim como nos resultados da educação. Porém, essas são situações que, para serem solucionadas, exigem investimentos públicos, tanto em quantidade como em qualidade.

E é preciso ter presente as dificuldades de um estado de dimensões gigantescas, com uma população bastante dispersa. São fatores que oneram os serviços públicos.

No último dia 31 de maio, o jornal O Globo trouxe uma matéria de fôlego sobre a extrema pobreza no Rio de Janeiro e no Brasil. Conta histórias de brasileiros que sobrevivem com renda per capita inferior a R$ 140,70. Esse seria o valor, segundo o Ipea, necessário para comprar uma cesta de alimentos com a quantidade mínima de calorias. Com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) de 2013, do IBGE, relativa ao período que vai de 2003 a 2013, o jornal apresenta o ranking da miséria entre os estados do Brasil.

Nessa década, Mato Grosso despencou quatro posições. Foi da 7ª para a 11ª colocação. Passou a figurar na pior situação entre os estados do Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Ou seja, a prosperidade econômica da última década - evidente! - foi insuficiente para reduzir a extrema pobreza no estado. A situação da indigência, em termos relativos, piorou.

Boa parte desse descompasso, que mantém um estado pobre em meio aos exemplos de prosperidade, pode ser atribuído ao desarranjo nas finanças dos estados exportadores provocado pela Lei Kandir. A Lei Complementar nº 87 de 1996 - conhecida pelo nome de seu autor, o ex-deputado federal Antônio Kandir - isenta do tributo ICMS os produtos e serviços destinados ao exterior. São intermináveis as disputas pela justa indenização ou compensação da União aos estados exportadores. O fato é que há estudos que apontam robustas perdas para estados como Mato Grosso.

O tema é complexo, mas precisa ser discutido.

Há outras questões instigantes para uma reflexão adequada do fenômeno: a crescente concentração das propriedades; o modelo de produção que agrega pouco valor nas comunidades e no estado; os financiamentos públicos facilitados para atividades que geram empregos de baixa qualidade; e outros incentivos fiscais que debilitam as finanças públicas estimulando atividades de reduzido impacto na economia regional.

A discussão precisa ser pautada segundo os parâmetros do modelo jurídico de um país que consagrou, na Constituição, o objetivo fundamental de construir uma sociedade livre, que garanta o desenvolvimento nacional. Tudo isso, sem esquecer que a mesma Constituição também consagrou como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade justa e solidária, e comprometeu-se a erradicar a pobreza e a marginalização e a reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º da Constituição de 1988).

A solução não é simples. Mas o agravamento do quadro de desigualdade é claramente contrário à promessa constitucional de construirmos uma sociedade que promova o bem de todos. Do contrário, nossa terra, bem cultivada, continuará dando de tudo, mas colheita para poucos.

LEOMAR DARONCHO é Procurador do Trabalho em Mato Grosso

Artigo publicado originalmente no jornal A Gazeta do dia 06/07/2015

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