Cegueira deliberada trabalhista

Por Amanda Fernandes Ferreira Broecker*

Nos últimos 50 anos, o Direito do Trabalho tem sofrido severos ataques, sob a retórica da modernização e da maior competitividade empresarial. A lei do FGTS e do contrato temporário, o banco de horas, dentre outras, são alterações que objetivaram flexibilizar e reduzir direitos historicamente conquistados. 

O mais recente ataque aos direitos trabalhistas atende pelo nome de Projeto de Lei n. 4.330/2004, aprovado pela Câmara dos Deputados e encaminhado ao Senado Federal. A proposta, que agora tramita como Projeto de Lei da Câmara n. 30/2015, permite a terceirização sem limites de toda e qualquer atividade de uma empresa. Atualmente, a permissão é estendida apenas às atividades-meio.

É claro que o fenômeno da terceirização não é recente, do contrário não teríamos 12 milhões de terceirizados no Brasil. Mas engana-se quem pensa que o PLC n. 30/2015 regulamentará a precária situação desses trabalhadores.

Se virar lei, provocará a dispensa em massa de muitos dos 35 milhões de brasileiros que têm um emprego direto. Hoje, um trabalhador terceirizado possui salário 24,7% inferior ao pago a um contratado direto, mas trabalha, em média, três horas semanais a mais. São também o maior alvo de assédio moral, discriminação e trabalho escravo.

Além disso, a cada 10 acidentes de trabalho fatais, oito envolvem trabalhadores terceirizados. As obras da Copa do Mundo são um exemplo claro dessa matemática: dos 12 acidentes de trabalho com óbito, 11 vitimaram terceirizados.

Para somar-se aos prejuízos, uma lista divulgada pelo Tribunal Superior do Trabalho aponta que dos 100 maiores devedores trabalhistas, 22 são prestadoras de serviços. Ou seja, a terceirização ainda aumenta o risco do "calote", em detrimento do trabalhador.

Por essas e outras razões, o Ministério Público do Trabalho é contra a terceirização da atividade-fim. É seu dever constitucional defender a ordem jurídica e buscar a proteção e o respeito à dignidade dos trabalhadores. E o princípio da independência funcional de seus membros permite que a instituição atue com autonomia, sem interferência de qualquer Poder. Desse modo, o MPT já ajuizou inúmeras ações civis públicas requerendo a responsabilização solidária dos beneficiários da cadeia produtiva.

Na área têxtil, é comum que pequenas oficinas de costura, para produzirem peças de roupas para grandes grifes a baixo custo, submetam terceirizados a condições degradantes de trabalho. Nesse caso, a omissão da empresa que se beneficiou do trabalho deve ser caracterizada como fraude aos direitos trabalhistas. Enquadra-se na teoria da "Cegueira Deliberada", muito difundida no Direito Penal, segundo a qual o agente que finge ignorar o ilícito também deve ser punido.

Não é por acaso que a mesma Câmara dos Deputados que votou, em sua maioria, favoravelmente ao PL nº 4.330/2004, tem discutido a alteração do artigo 149 do Código Penal, que trata do crime de redução à condição análoga à de escravo, com o objetivo de esvaziar o conceito atual. No ano de 2014, dos 10 maiores flagrantes de trabalho escravo contemporâneo no Brasil, oito diziam respeito a trabalhadores terceirizados. Em outras palavras, terceirização e trabalho escravo andam juntos.

Uma vez aprovado pelos senadores e não recebendo o veto presidencial, o Projeto de Lei da terceirização resultará em substancial aumento de acidentes, mortes, trabalho escravo e dispensas, bem como no agravamento da desigualdade social. Na mesma proporção, haverá diminuição de salários e esvaziamento da eficácia dos direitos trabalhistas, em flagrante afronta à luta histórica por trabalho digno.

No livro "Ensaio sobre a cegueira", José Saramago adverte acerca da "responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam". Mas, nesse caso, não há cegos. Simplesmente não é conveniente enxergar.

*AMANDA FERNANDES FERREIRA BROECKER é Procuradora do Trabalho em Mato Grosso

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